Saturday, November 26, 2005

Entrevista para o K36 Kreuzberg News


Dando uma de índio "Tupitáputo", no filme "O RIO",
de Marcelo Serra...


Ras Adauto e Leon Oranian, no Karneval der Kulturen,
Berlin junho de 2005 - Foto: Katharina La Henges


- Ras Adauto é seu nome?

- Nao, isso é um nome artístico, um nickname... O meu nome mesmo é Adauto de Souza Santos. Ras Adauto adquiri dentro do movimento rastafari no Rio de Janeiro...do qual sou um dos agitadores.

- Voce nasceu aonde?

- Nasci no Rio de Janeiro, na comunidade favelada do Andaraí. Sou de origem baiana, carioca, indígena, portuguesa; aquele caldo grosso brasileiro, aquele tempero, entre a senzala e os terreiros, a casa grande e as florestas selvagens do Brasil...

- Voce trabalha com várias mídias, com várias artes (cinema, video, literatura, teatro, música, fotografia, etc). Como é isso pra voce? É uma inquietacao que voce tem... ou?

- Eu sempre gostei de artes. Essa coisa de ser artista, de inventar coisas mágicas, pensar que eu sou outra pessoa, um personagem de ficcao... Minha primeira grande paixao foi a literatura, desde pequeno a literatura fez parte da minha formacao. Meu pai, um operário da indústria textil, semi analfabeto, me ensinou a ler aos 3 anos de idade e foi ele quem me deu o primeiro livro. Apartir daí comecei a ler tudo que caia na minha mao. Nao foi atoa que entrei para a Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro para estudar Literaturas. Posso dizer que da Literatura Brasileira li praticamente tudo, dos clássicos aos modernos. A minha mae ficava preocupada comigo e dizia que ei ficar maluco de tanto ler. Mas na verdade eu já estava doido há muito tempo, pois a literatura, seus personagens, cenas e situacoes foram as chaves fundamentais para as outras artes e para meu processo de criacao e fantasia. Adoro fantasiar as coisas, imaginar situacoes absurdas, impasse ficcionais, poéticas, dramas... tudo isso. Por isso adoro o universo infantil, onde habitam os seres fantásticos, os sacis pereres, os gnomos, as fadas, o outro lado do espelho das alices de todas as culturas, dos irmaos grimm à monteiro lobato... Adoro criar coisas com o meu filho Leon, que tem uma imaginacao que nao está no gibi...

O teatro veio quando em 1979 fui para o Teatro Oficina de Sao Paulo, aí me desenvolvi como ator, um farsante, o mascarado, o dissimulador. Pois foi no Teatro Oficina, com os treinamentos radicais de José Celso Martinez Correia o maior diretor do teatro moderno brasileiro, que penetrei nesse patamar complexo da esquizofrenia humana e da dissimulacao artística, entre o ridículo e a caretice humana e a celebracao da tragédia e da comédia...

.A música, que acompanha todo mundo desde que nasce, veio no processso e apesar de nao ser um músico, já cometi uma série de composicoes e sempre tive ligacoes fortes com músicos, cantoras, no Brasil e agora aqui em Berlin. Acho a música a arte universal por excelencia, a mais anti-racista, a que mais penetra na consciencia humana. Agora, gosto de boa música, nao essa enxurrada de bobagens ridículas que está rolando por aí. Gosto de ouvir todo tipo de música: clássica, hip-hop, blues, jazz, reggae, música indú música árabe, indígena, batuques, etc É a comunicacao mais avancada da humanidade pra mim... E o meu país tem uma das músicas mais ricas do mundo e os brasileiros sao altamente musicais.

Aí depois na sequencia foram entrando o cinema, o video, a fotografia...Adoro a questao mágica da imagem em movimento. Da ciencia da película cinematográfica, extensao da fotografia; e agora a tecnologia digital. E também da projecao dessa imagem para criar uma atmosfera de uma outra dimensao, uma humanidade paralela que se movimenta num filme, num documentário...É fascinante!

- Voce acredita que o artista é um ser especial?

- Eu acho que nao... O artista é um ser humano como qualquer um... Mas o que ele traz de diferente é a possibilidade de criar coisas que nao existem para entreter e fazer sonhar as outras pessoas, como Chaplin, Picasso, Glauber Rocha e tantos e tantas outras fizeram e fazem. Hoje com essa ridícula sociedade de espetáculos voltamos àquela visao do artista inatingível em sua torre de marfin de segurancas, guarda-costas, etc., que o resto dos mortais tem que ficar adorando enquanto eles se apresentam em seus palcos ilumindados e caros. E quando esses tais artistas se apresentam é a merda que se ve, a mediocridade toda. Um verdadeiro artista é o ser humano que tem como funcao elevar a qualidade imaginativa do inconsciente da humanidade, por isso ele é um rebelde permanente contra a mediocridade das cenas desses falsos espetáculos...

- Voce gosta de política?

- Eu gosto de política social, no sentido mais amplo. Nao tenho muito paciencia para políticos, principalmente no meu país, com toda aquela mediocridade absurda ainda originária dos tempos da colonia, onde se exterminavam nacoes indigenas e escravizavam negros africanos para enriquecer as poucas famílias senhoriais. Isso ainda continua, mas tem muita gente lutando há anos contra isso, contra esse cancro no Brasil. E digo mais, o Brasil é um dos piores países racistas do mundo atualmente. E isso vem lá de cima e atinge toda uma sociedade crítica...que ainda nao resolveu o seu principal problema de identidade real e nao fictícia... Esse é um romance, a novela que eu nao gosto. Como diria um poeta famoso brasileiro, o modernista Oswald de Andrade: "O Brasil é o único país do mundo, que a elite é estrangeira e o povo brasileiro"... É mais ou menos por aí... Essa elite brasileira sonha em ser "europeu" ou "americana" e nao ve que a própria Europa e os Estados Unidos estao numa puta crise de sua identidade multicultural e multiracial... Acredito eu que esses lances sao os grandes temas para o próximo milenio, nao sao só as guerra religiosas ou os tais terrorismos que estamos assistindo e participando hoje em dia. O mundo todo está passando por uma longa crise de identidade e de identificacao, e o meu país ainda está pensando com a cabeca da Casa Grande e das Senzalas, no século XIX... O que que somos? Nós somos tudo isso e ainda temos que fazer parte da grande movimentacao global do mundo.

- A sua arte é política?

- No sentido amplo, sim. Qualquer acao artística pode ser considerada política, pois o ser humano é um ser da polis. Agora: eu nao gosto da arte dirigida, desse tipo de arte catequética, que voce tem que fazer a cabeca das pessoas. Ou que voce por ser negro, índio, turco, etc e tal, voce TEM que fazer arte sobre aquilo. Evidentemente se voce é um negro, voce diretamente, quase que inconscientemente, voce vai retratar o seu universo, contar seus dramas, conflitos, a partir de onde voce veio... Mas acredito que um artista verdadeiro ele deve ampliar as suas possibilidades e falar de qualquer coisa sem limitacoes ideológicas ou imposicoes catequéticas. Eu nao preciso mais, hoje em dia, ficar repetindo pra todo mundo que eu sou um negro. Eu sou um Negro e pronto. E as minhas artes partem disso... Essa é a minha base universal, ser Negro, para falar com todas as línguas e sentidos para a humanidade toda. Nao quero ficar reduzido a um gueto que me coloquem. Por isso o personagem que eu mais gosto e me guio é o Orixá Exú, figura central do Panteon da religiao afro-brasileira de origem Yorubá. Exú se movimenta em todas, está em todos os caminhos, fala todas as linguagens, é o grande artista dos mil instrumentos, toca flauta e chupa cana ao mesmo tempo... Exú nao cai nesse papo de guetos e artes reduzidas, e é sempre o Exú, o que tem mais de mil nomes... Exú é o rei das Artemanhas!

- E aqui em Berlin, voce faz o que?

- Em Berlin faco parte de uma comunidade de artistas de várias nacionalidades e áreas de atuacao. No Brasil eu também fazia parte de uma comunidade assim, mas só que aqui acontece uma extensao, pois nao temos só brasileiros ou brasileiras, entendeu? Berlin é muitiracial internacional. Faco parte de uma associacao chamada Nijinski Arts Internacional e.V.-Berlin. E desenvolvo o meu trabalho junto com minha grande parceira e amiga, Katharina la Henges. E nós estamos agora introduzindo o nosso filho Leon Oranian, de 6 anos, na nossa banda de teimosos sonhadores imaginativos. Na verdade na verdade, eu sou um macumbeiro, o que eu faco é macumba, minha arte é a minha macumba. O grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade escreveu que: "A poesia é a minha cachaca". Eu escrevo: "a poesia é a minha Macumba". Antes eu fazia macumba nas encruzilhadas do Rio de Janeiro, hoje faco macumba no meio do mundo aqui em Berlin... Quero ser cada vez mais um ser universal, debaixo de minha pele negra, a minha melhor arte!...

Entrevista: Andreas Dick
Entrevistado: Ras Adauto

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