Cunhaporanga
Garimpos de mortes, lucros clandestinos
e desesperos radioativos.
Índios lambendo lascas de cassiterita,
urânio e nióbio.
Comandos de motor-serras e fogos de queimadas.
Na fachada, em letras caprichadas de néon
e desenhos de araras:
"RESERVA: Turismo Ecológico!".
- Por aqui senhoras e senhores, que belo plano:
seringais nas vitrines
onças mestiças sonolentas
jacarés preguiçosos ao sol
macacos engraçados tocando punheta
ultimas novidades do Jupon
Wonderful, Wundebar, Amazonas!
O grande rio caudaloso
e seu afluentes e igarapés
correm seus destinos e máguas imensas
e não escutam os gritos das meninas morenas
estupradas nas taperas e quebradas.
O governador prega a moral nacionalista e regional:
- A Amazônia é nossa!...
Mas as suas mãos estão sujas de dólares e peles de jacaré
e quantas madeiras foram cortadas, curumim ?
A cólera se avizinha pelos intestinos dos meninos
e batalhões de urubus passeiam nos quintas
e margens do rio
anunciando uma ópera-fúnebre...
A turista-gringa videografa o caboclinho beautiful
fazendo piruetas engraçadas vendendo cupuaçu na porta do hotel 5 estrelas:
depois ela fotografa solene
a fachada da catedral-teatro Amazonas
(dizem que nos subterraneios da catedral
se arrastam fantasmas de índios massacrados
e uma imensa cobra mitológica)
Mas a grande selva-selvagem
ruge ainda as revoltas dos índios insurretos
e das antigas nações destrocadas
que não se entregaram nunca.
Mas seus poetas estão bêbados
seus pintores loucos
seus jornalistas mudos
(Será?)
O Karapanã ronda o próximo amanhecer
e tem a promessa escondida de Ajuricaba e Maruaga
(Será ?)
O resto é desconsolo e esperanças misturadas
imensidão de águas infinitas
novidades eletrônicas na Zona Franca
favelas de latas
turismo na parte da selva domada
ruídos irritantes de motor-serras
comboios de fenemes e mercedes bens
rasgando as estradas da floresta
arrastando minérios para as usinas nucleares
dos Estados Unidos e da Europa toda.
No fundo do agarapé
há um caboclo esperto
espiando pela janela da tapera
os invasores de suas terras
- segura firme o afiado terçado.
Um radar imenso vasculha a região
periquitos-turbinados cortam a mata à óleo diesel
levam o ouro clandestino misturado com o ipadú
e sangue misturados nos garimpos contaminados
Indiazinhas amordaçadas em puteiros palafitas
quilombos se irriquietam na bacia do rio trombetas
parabólicas emplumadas recebem a Rede Globo
em plena mataria dos manaús:
araras e jacarés-acu querem aparecer na televisão!
Padres pastores missionários bandeirantes generais
políticos fazendeiros burocratas garimpeiros antropólogos gringos
pesquizadores jagunços posseiros juizes sertanistas televisões
funai e tantos outros vampiros
cercam obsessivamente as malocas e aldeias.
Vou ali trocar uns dólar
- Tem suco de cupuaçu, graviola, mastruz, abacatada.
Fala alí com o Índio!
- Quero uma caldeirada de Tucunaré!
Uma ararinhanha de óculos ri pra mim!
O peixe boto-tucuxi
na sua importância de governador
diz cinicamente para Mary Anderson
correspondente da BBC de Londres:
- Internacionalizar?
nem pensar:
isso aqui é uma reserva ecológica
auto-sustentada. ok?
e pergunta para sua assistente:
- Fui bem? Fotografei bem?
E um curumim. saído no sei da onde,
vira-se para a câmera da BBC e diz:
-"Yá só Pindorama koti itamarana pó anhatin,
yara rama ae rece".
(Criança, não verás nenhum país como esse!)
Ras Adauto Baraúna
(Psicografado na madrugada de 02.03.1992, a bordo de uma
rede instalada entre mais de 100 outras redes e almas,
no motor "Rodrigues Alves II, entre Santarém e Belém do Pará,
Rio Amazonas)
1 comment:
incrível, adauto!! esse poema é uma porrada!!
dá para sentir o deslizar do barco sobre as águas doces e sanguíneas encarnecidas por séculos de crueldade colonial desgraçadamente ainda mandando.
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